quarta-feira, 13 de junho de 2012

Um daqueles dias em que São Paulo parou.


Consultou o relógio no pulso, já fazia uma hora que estava praticamente parado naquele trânsito. Como estava indo para casa, deu de ombros tentando ocultar o descontentamento. O ar começou a ficar abafado e ele então ligou o ar condicionado. Em um instante o ar gélido preencheu todo o interior do enorme carro. Aos poucos foi se dando conta da aflição dos demais motoristas. Avistou pelo retrovisor um senhor que deixou o interior do carro e sentou-se na calçada. “Certamente esse coitado não dispõe de um ar condicionado” pensou tentando encontrar conforto nesse pensamento. De repente outros motoristas passaram a aderir ao mesmo gesto. Em pouco tempo, muitos motoristas passaram a fazer companhia ao velho travando calorosos debates acerca do caos que estava diante deles. Mas o distinto motorista relutava em se misturar. Nunca gostou de manter contato com pessoas estranhas. Sua classe social de certa forma era um entrave para que isso pudesse acontecer. E ali permaneceu por mais uma hora sem mover-se um centímetro se quer. Resolveu então ligar para sua esposa para colocá-la a par do que estava acontecendo, mas ela já havia visto os noticiários e lhe disse ainda que aquilo não era um caso isolado, que toda a cidade havia parado. Um vendedor ambulante passou de carro em carro vendendo água e ele mesmo com a garganta seca não teve coragem de baixar o vidro com receio de ser assaltado.  Mesmo com o banco confortável de sua Mercedes, suas costas passaram a latejar. Trinta minutos passados, sentiu-se com uma enorme vontade de urinar. Passou os olhos em volta e avistou um boteco sujes mundo. Esmurrou o volante com raiva e despejou inúmeros palavrões. Enfim, respirou fundo, destravou as portas e deixou cautelosamente o interior da luxuosa Mercedes. Já previa que chamaria a atenção de todos, pois havia sido o único que ainda permanecia no veículo. Sentiu uma enorme vontade de despreguiçar, mas a timidez o tomou por completo. Pediu licença a todos que estavam em frente ao boteco e dirigiu-se ao balcão. Um senhor com dentes de ouro o atendeu prontamente. E ele praticamente sussurrando pediu para usar o banheiro. Ao sair mais aliviado, esboçou um sorriso, mas logo franziu o cenho novamente. Agradeceu de forma ríspida e voltou imediatamente ao seu carro.

E lá permaneceu por mais cinco horas.

                      

terça-feira, 12 de junho de 2012

Família

Após ter encarado todo aquele trânsito caótico de São Paulo, chego enfim ao meu ex-lar, toco a campainha e ouço instantaneamente a voz sempre aflita da minha ex-mulher ordenando ao meu filho (filhos, esses nunca serão ex) que abra a porta. Caio me atende com um lindo sorriso e repentinamente pula em meu pescoço. Solto um gemido e fico constrangido. O moleque quase me descadeira.  Já me vejo daqui a umas horas fuçando em minha caixa de primeiros socorros a procura de um anti-inflamatório. Mas a dor logo passa, talvez pela alegria de revê-lo. Minha profissão exige que eu viaje para outros estados e essa última viagem fez com que eu me ausentasse por quase um mês. Caio como sempre educado, me convida a entrar, mas recuso de imediato. Não consigo sentir-me bem lá dentro. Em seguida surge Cássia e de forma desajeitada cumprimenta-me com frieza. Mas sua indiferença não me atinge, pois sei que é da boca para fora. Cássia tem se tornado um manancial de mágoas. Ela não conseguiu digerir nossa separação. Mas ao menos tem tido o cuidado de blindar nosso filho. Mesmo com toda a sua revolta, nunca foi capaz de denigrir minha imagem como homem e como pai.

A chuva que estava ameaçando cair, logo cai e nos pega no trajeto da casa para o carro. Saio correndo na frente e peço para eles correrem também e talvez em razão da coluna a pouco contundida, escorrego ridiculamente batendo a bunda num início de poça. Caio do alto de seus sete anos, corre em minha direção para me ajudar, mas Cássia, ah Cássia! Essa se contorce de tanto rir e eu que a princípio havia ficado possesso, logo relaxo envolvido naquele sorriso peralta, sorriso que há tanto tempo não presenciava. Fomos então ao supermercado. Cássia fazia questão de que eu fizesse as compras de casa e por isso não entrou na justiça solicitando a pensão. Foi de comum acordo. Alimentação, materiais escolar, convênio médico e odontológico eram por minha conta. Ela se recusava em receber em dinheiro. Depois de algum tempo, eu saquei que era um pretexto para me ter por perto.

Chegando ao supermercado, senti que dessa vez eles não iriam dispor de minha companhia. A queda havia agravado mais ainda minha coluna e por isso decidi ficar esperando no carro. Cássia compreendeu e foi às compras com Caio. Fiquei ali, sozinho entre aqueles carros estacionados. De repente me vi fazendo um balanço do que havia se tornado minha vida. A solidão e a liberdade que eu tanto queria, estava por me sufocar, até mais do que o controle e o ciúme de Cássia. Aliás, com a distância, notei inúmeras virtudes nela. E hoje, depois de seu sorriso, depois de sentir sua fragrância adentrando minhas narinas, depois de ver como ela zela da casa e do Caio e de como ela não se entregou, mesmo sofrendo, comecei a considerar que ela merecia uma chance, coisa que até então não havia ocorrido. Essa hipótese foi me tomando e eu já não me via mais sem eles. Repentinamente, ambos emergem do nada e ao avistá-los atravessando uma parte do estacionamento me recomponho, abaixando para calçar os sapatos e um estrondo violento ecoa sobre o estacionamento. Levanto a cabeça e vejo um veículo com a frente amassada e o para-brisa estilhaçado. Mais a frente dois corpos ilhados de sangue. Solto um grito visceral e acordo com minha agora futura mulher e meu eterno filho batendo no vidro do carro.