terça-feira, 27 de novembro de 2012

TEMPO


Está tão difícil seguir em frente
Que dá até vontade de parar
Não agüento a voz a gritar: tente
Não desista, não pare de lutar.

Estou precisando me dar um tempo
Procurar bem lá no fundo a paz
Que até foi levada pelo vento
Mas já não consigo correr atrás.


Eu sei que é incerto o futuro
É preciso dar um passo por vez
Aprendi isso depois de maduro
Com o tempo se deve ser cortês

DE REPENTE O AMOR


Sei que deslumbrado já estava
Com a beleza exterior
Porém eu jamais imaginava
Encontrar um ser superior

Sei que preocupado procurava
Igual a um cão farejador
Entretanto eu não suspeitava
Que te veria no corredor

Sei que ocupado eu andava
Parecendo empreendedor
Mas o meu espírito vagava
Como o de um velejador

Mas todo o vazio que comandava
Foi atropelado por trator
E naquela tarde eu encontrava
Todo o sentido do amor

VISITA INTERIOR


Entre, mas deixe a porta entreaberta
Pode ser que você se assuste com que irá se deparar
Veja se consegue suportar o cheiro de mofo
Em instantes sua retina se acostumará com o breu
Só tenha cuidado pra não tropeçar na bagunça esparramada pelo chão
Não se espante. Tudo isso não foi causado por um tornado, pois tudo aqui é muito lento.
As horas aqui dentro duram quase que uma eternidade.
É tudo tão monótono.
E aí, não vai correr?
Vai mesmo ficar?
Está disposta a pagar esse preço?
Pois bem, mãos a obra.
O amor já esperou demais.

RÁPIDA REFLEXÃO


Mas por que raios estou correndo tanto?
E essas mãos trêmulas que já não tem mais firmeza.
Estabanação, Palpitação, aceleração.
Pra que mesmo?
A eterna ânsia de chegar.
Mas chegar aonde?
Olha só, não estou sozinho! Quantos atletas me fazem companhia!
São atletas ou usurpadores do meio reino?
Meu reino de inquietudes e angústias.
Vou logo terminando por aqui, pois o tempo urge.

AMIGO DO PEITO


- E aí Chico, tudo tranqüilo?
- Meu amigo! Estou feliz demais. Lembra aquele Kadet que eu estava doido pra comprar?
- Sim me lembro - respondi temeroso com o que viria pela frente.
- Pois é cara, comprei ontem. O Geraldo facilitou a forma de pagamento.
Eu não podia acreditar que meu amigo, além de fazer essa besteira de adquirir uma lata velha, ainda por cima comprou a prazo e o pior, ainda estava feliz.
- Só não vou dar uma churrascada lá em casa pra comemorar porque fiquei duro – disse- me o infeliz.
- Fico feliz em saber que você realizou o seu sonho.
- Passa mais tarde lá em casa pra ver a máquina.

 - Pode deixar Chico, daqui a pouco eu vou lá ver.
- Até daqui a pouco.
- Até mais Chico.
Duas horas depois, estava eu presenciando Chico e seu orgulho radiante. Realmente era impressionante o entusiasmo com que ele me apresentava cada detalhe obsoleto daquela “máquina”. Sinceramente, pensei até que Chico estivesse

- Vamos dar uma volta?
- Vamos – aceitei o convite já me arrependendo.
Saímos por aquelas ruas vizinhas com Chico parecendo um penta campeão desfilando em cima do carro do corpo de bombeiro. Não havia uma só pessoa que não tivesse lhe dado os parabéns. Confesso que aquilo já estava me dando nos nervos.
Quando chequei em casa, peguei a chave do meu Corolla e me dirigi até a garagem. Dei uma volta em torno do carro e comecei a observar detalhes que nunca havia dado atenção. Era impressionante como sua pintura reluzia naquela garagem. Passei a mão sobre os pneus e senti os pelos ali praticamente intactos. Entrei em seu interior e senti que o banco estava até mais confortável do que nunca. Dei a partida e com uma brusca acelerada me arrepiei ao ronco suave do motor.
- Isso sim é carro! – falei em voz alta.
No dia seguinte, passei novamente na casa de Chico e lá estava ele, encerando a pintura gasta do Kadet.
- E aí Edgar, viu como está ficando bonito meu carro?
- Isso vai dar trabalho hein, até tirar essas manchas da lataria.
- É, mas vale o sacrifício.
Fiquei na companhia de Chico por uns quarenta minutos, presenciando aquele autoflagelo, pois as manchas insistiam em não sair.

Pensando bem, acho que o flagelo maior era o meu, pois não conseguia compreender como podia um cara ter tanta satisfação numa coisa que nem dava pra chamar de bem material, enquanto eu que estava infinitamente em melhores condições financeiras, não conseguia me dar por contente. Sempre achava que me faltava algo.
Despedi-me de Chico e resolvi afastar-me dele por um tempo, até entender esse sentimento que me abatia.
Passado um tempo, encontrei pelas ruas o Zé Roberto. Ele me informou que no dia anterior, Chico havia sido roubado e espancado por um ladrão que estava encapuzado. O bandido o deixou quase desfigurado e em coma, ainda por cima levou seu carro e em seguida ateou fogo naquele que era o xodó de Chico.
Despedi-me de Zé Roberto e de repente me veio outra crise de espirro e a única coisa que me passava na cabeça era:
- Maldita hora em que fui usar aquele capuz!


O INOCENTE


Primeiro dia de serviço, hora do almoço, me dirijo até o refeitório para cortar um mamão e pro meu desconsolo, não encontro uma faca se quer naquele lugar abarrotado.
Não deu outra:
- Cabra do norte não presta
Facas foram sacadas imediatamente.
- Repete o que você acabou de falar – disse um senhor com cara de poucos amigos já com a faca em meu pescoço.
- Cabra do norte não presta, pois comprei uma e não deu leite. A propósito, me empresta a faca.

VOCÊ


Ontem você foi minha esperança
Hoje você é meu desgosto
Ontem você foi minha segurança
Hoje você é um encosto.

Ontem você foi minha alegria
Hoje você é minha tristeza
Ontem você foi minha energia
Hoje você é minha fraqueza

Ontem você foi minha princesa
Hoje você é assombração
Ontem você foi minha defesa
Hoje você é minha perdição.

CRENÇAS


Todas as minhas crenças estão abaladas.
E pasme, está sendo tão bom.
É como renovar o guarda roupa.
É como se um daltônico percebesse outras cores.
É como se de repente o fracasso pudesse ser entendido como um estágio.
E não como um entrave no caminho de um obstinado.
Todas as minhas crenças já me ajudaram um dia.
Mas foram úteis por apenas um dia.
E não para perdurarem por toda a minha existência.

PAZ


De repente, uma clarividência.
De repente, um doce torpor.
De repente, surgiu a paciência.
De repente, extinguiu o rancor.

De repente, a luz se acendeu.
De repente, o horizonte se abriu.
De repente, a esperança nasceu.
De repente, o coração que sorriu

MOONLIGHT

domingo, 28 de outubro de 2012

O Sogro


 
 

Enfim o fatídico dia havia chegado. Era o momento de Sidney conhecer o “sogrão”. Seu coração palpitava como uma britadeira. Ao chegar ao portão, suas pernas ficaram imóveis e um sentimento aterrorizante o tomou por completo. Respirou fundo, tirou o lenço do bolso e enxugou sua testa umedecida pelo excesso de suor. Sentiu uma vontade imensa em desistir e sair dali correndo, mas como era homem de palavra, não podia voltar atrás. Apertou o botão da campainha com seu dedo flácido e o som que a mesma emitiu foi tão fraco quanto seu desejo. Em segundos saiu Rosana, a responsável por tudo aquilo. Estava mais linda do que nunca e isso o encorajou um pouco. Ao adentrar a casa, passou a vista rapidamente pela espaçosa sala e de cara viu um porta retrato que ele presumiu ser seu sogro. Ele vestia uma farda camuflada e empunhava uma pistola nove milímetros. Petrificado, Sidney nem percebeu que por três vezes seguidas Rosana lhe pedia para sentar. De repente uma voz hostil veio surgindo da cozinha e uma enorme sombra antecedeu a chegada do falante. O Coronel tinha quase dois metros de altura e era dono de um corpo esguio. Sua expressão era dura e ele não conseguia disfarçar sua contrariedade:


- Então, você que é o tal Sidney?

- Sim, sim , sou eu sim. Muito prazer! – Esticando seu braço para cumprimentar o Coronel.

- Prazer, a tá , prazer. – O coronel o cumprimentou deixando sua mão completamente destroçada.

- Rosana, vá até minha adega e traga um Merlot. Não precisa ser de uma boa safra não.

Aproveitando a ausência momentânea da filha, o Coronel foi tratando logo de dar seu ultimato.

- Escuta aqui seu maloqueiro. Se você pensa que vai ficar só na curtição com a minha princesinha, você está muito enganado. Não fui com a sua cara e vou marcar cerrado. Não vou te dar sossego. Só aceito essa situação para não contrariar minha filha que já sofreu demais com a morte da mãe.

Nesse momento a filha retorna e nota que o clima entre os dois ainda não estava amistoso.

Com o vinho, Rosana trouxe também um dvd de um show que Sidney havia lhe emprestado. Enquanto o pai se encarregava de abrir a garrafa, Rosana colocou o dvd para rolar. Após o brinde o Coronel ficou olhando indiferente para a tv. De repente, após Bono Vox ter terminado sua parte na canção Miss Saravejo, surge Pavarotti com sua voz estupenda cantando a plenos pulmões. O pai repentinamente cai em pratos, deixando os dois presentes atônitos. O Coronel sem conseguir conter-se já em soluços confirma com Sidney:

- Esse dvd é seu mesmo?

 Sidney responde relutante:

- Sim, é meu.

E o Coronel com um sorriso emocionado diz:

- Então me dá logo um abraço vai. Seja bem vindo meu filho!

 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Catarse


É bom demais ter deixado de ouvir o som daquela voz de sempre, dizendo-me as mesmas coisas como se fosse um disco arranhado. Aquela voz que tanto me torturava, dilacerava minha alma com extrema facilidade. Eu era assim, um masoquista, que mesmo desconfiado, deixava-me seduzir acreditando piamente naquelas mentiras. Mas a verdade mesmo que tardia, repentinamente emergiu e assim, pude enfim notar a face do meu algoz. Era uma face  cansada e triste que tinha um olhar endurecido. Ele que no passado havia se aproveitando das minhas decepções sofridas e se instalado sorrateiramente em meu interior, coitado! Foi expurgado com a mesma facilidade que entrou.

sábado, 20 de outubro de 2012

Libertação




Ao sair da igreja, notou que não sentia seus pés. O vento soprava intensamente indicando que estava por emergir um dilúvio. Eugênio não se deteve e continuou seu trajeto preferindo até que chovesse para limpar de vez sua alma que já se encontrava quase alva. Sentia-se flutuar sobre a calçada com seus passos cadenciados. A alegria enfim havia lhe tomado por completo.

Passando em frente a um sobrado, ouviu gritos de uma mulher clamando por socorro. A rua estava deserta. Eugênio ficou estático por alguns segundos diante da casa. Os gritos acompanhados de pancadas foram se aproximando do portão. E ele rapidamente pensou:

- Quer saber, não tenho nada a ver com isso. Custei para me libertar daquela agonia e agora que me sinto bem não vou botar tudo a perder.

E saiu resoluto, esquecendo-se das palavras que mais ouvira naquela noite:

Compaixão.



quarta-feira, 13 de junho de 2012

Um daqueles dias em que São Paulo parou.


Consultou o relógio no pulso, já fazia uma hora que estava praticamente parado naquele trânsito. Como estava indo para casa, deu de ombros tentando ocultar o descontentamento. O ar começou a ficar abafado e ele então ligou o ar condicionado. Em um instante o ar gélido preencheu todo o interior do enorme carro. Aos poucos foi se dando conta da aflição dos demais motoristas. Avistou pelo retrovisor um senhor que deixou o interior do carro e sentou-se na calçada. “Certamente esse coitado não dispõe de um ar condicionado” pensou tentando encontrar conforto nesse pensamento. De repente outros motoristas passaram a aderir ao mesmo gesto. Em pouco tempo, muitos motoristas passaram a fazer companhia ao velho travando calorosos debates acerca do caos que estava diante deles. Mas o distinto motorista relutava em se misturar. Nunca gostou de manter contato com pessoas estranhas. Sua classe social de certa forma era um entrave para que isso pudesse acontecer. E ali permaneceu por mais uma hora sem mover-se um centímetro se quer. Resolveu então ligar para sua esposa para colocá-la a par do que estava acontecendo, mas ela já havia visto os noticiários e lhe disse ainda que aquilo não era um caso isolado, que toda a cidade havia parado. Um vendedor ambulante passou de carro em carro vendendo água e ele mesmo com a garganta seca não teve coragem de baixar o vidro com receio de ser assaltado.  Mesmo com o banco confortável de sua Mercedes, suas costas passaram a latejar. Trinta minutos passados, sentiu-se com uma enorme vontade de urinar. Passou os olhos em volta e avistou um boteco sujes mundo. Esmurrou o volante com raiva e despejou inúmeros palavrões. Enfim, respirou fundo, destravou as portas e deixou cautelosamente o interior da luxuosa Mercedes. Já previa que chamaria a atenção de todos, pois havia sido o único que ainda permanecia no veículo. Sentiu uma enorme vontade de despreguiçar, mas a timidez o tomou por completo. Pediu licença a todos que estavam em frente ao boteco e dirigiu-se ao balcão. Um senhor com dentes de ouro o atendeu prontamente. E ele praticamente sussurrando pediu para usar o banheiro. Ao sair mais aliviado, esboçou um sorriso, mas logo franziu o cenho novamente. Agradeceu de forma ríspida e voltou imediatamente ao seu carro.

E lá permaneceu por mais cinco horas.

                      

terça-feira, 12 de junho de 2012

Família

Após ter encarado todo aquele trânsito caótico de São Paulo, chego enfim ao meu ex-lar, toco a campainha e ouço instantaneamente a voz sempre aflita da minha ex-mulher ordenando ao meu filho (filhos, esses nunca serão ex) que abra a porta. Caio me atende com um lindo sorriso e repentinamente pula em meu pescoço. Solto um gemido e fico constrangido. O moleque quase me descadeira.  Já me vejo daqui a umas horas fuçando em minha caixa de primeiros socorros a procura de um anti-inflamatório. Mas a dor logo passa, talvez pela alegria de revê-lo. Minha profissão exige que eu viaje para outros estados e essa última viagem fez com que eu me ausentasse por quase um mês. Caio como sempre educado, me convida a entrar, mas recuso de imediato. Não consigo sentir-me bem lá dentro. Em seguida surge Cássia e de forma desajeitada cumprimenta-me com frieza. Mas sua indiferença não me atinge, pois sei que é da boca para fora. Cássia tem se tornado um manancial de mágoas. Ela não conseguiu digerir nossa separação. Mas ao menos tem tido o cuidado de blindar nosso filho. Mesmo com toda a sua revolta, nunca foi capaz de denigrir minha imagem como homem e como pai.

A chuva que estava ameaçando cair, logo cai e nos pega no trajeto da casa para o carro. Saio correndo na frente e peço para eles correrem também e talvez em razão da coluna a pouco contundida, escorrego ridiculamente batendo a bunda num início de poça. Caio do alto de seus sete anos, corre em minha direção para me ajudar, mas Cássia, ah Cássia! Essa se contorce de tanto rir e eu que a princípio havia ficado possesso, logo relaxo envolvido naquele sorriso peralta, sorriso que há tanto tempo não presenciava. Fomos então ao supermercado. Cássia fazia questão de que eu fizesse as compras de casa e por isso não entrou na justiça solicitando a pensão. Foi de comum acordo. Alimentação, materiais escolar, convênio médico e odontológico eram por minha conta. Ela se recusava em receber em dinheiro. Depois de algum tempo, eu saquei que era um pretexto para me ter por perto.

Chegando ao supermercado, senti que dessa vez eles não iriam dispor de minha companhia. A queda havia agravado mais ainda minha coluna e por isso decidi ficar esperando no carro. Cássia compreendeu e foi às compras com Caio. Fiquei ali, sozinho entre aqueles carros estacionados. De repente me vi fazendo um balanço do que havia se tornado minha vida. A solidão e a liberdade que eu tanto queria, estava por me sufocar, até mais do que o controle e o ciúme de Cássia. Aliás, com a distância, notei inúmeras virtudes nela. E hoje, depois de seu sorriso, depois de sentir sua fragrância adentrando minhas narinas, depois de ver como ela zela da casa e do Caio e de como ela não se entregou, mesmo sofrendo, comecei a considerar que ela merecia uma chance, coisa que até então não havia ocorrido. Essa hipótese foi me tomando e eu já não me via mais sem eles. Repentinamente, ambos emergem do nada e ao avistá-los atravessando uma parte do estacionamento me recomponho, abaixando para calçar os sapatos e um estrondo violento ecoa sobre o estacionamento. Levanto a cabeça e vejo um veículo com a frente amassada e o para-brisa estilhaçado. Mais a frente dois corpos ilhados de sangue. Solto um grito visceral e acordo com minha agora futura mulher e meu eterno filho batendo no vidro do carro.

sábado, 28 de abril de 2012

O incrível caso do homem que substituiu o coração por um de papel e plástico.

A história que vou contar não consta nos anais de medicina, tampouco já foi sequer comentada ou citada em algum noticiário de tv ou digna de alguma linha na imprensa escrita, e tudo porque para muitos, de fato, ela pareça absurda. Dizem que certa vez houve um homem, e acredito que seja verdade, pois eu mesmo o conheci; ou penso que sim, não estou muito certo, que desde a mais tenra juventude sofria de dores agudas e contínuas no coração das quais por muito tempo nunca soubera a causa. Nunca apresentou, durante a infância, qualquer sintoma que indicasse o mau funcionamento do órgão, pelo contrário: viveu intensamente os lúdicos tempos de inocência da primeira idade.
Aconteceu que com o passar dos anos começou a sentir, no princípio de forma atenuada, dores nesse órgão vital ao funcionamento do organismo. Por pobreza e descuido nunca pensou em consultar um cardiologista, acreditava ingenuamente se tratar de algo comum a todos, tanto que durante a sua adolescência essas dores nem mesmo chegavam a incomodá-lo, e dessa forma passavam despercebidas.
Porém, a partir de um determinado período (e aqui começam as exceções e absurdos dessa narrativa), essas dores começam a se tornar mais fortes e constantes. As dores até então simples mal estar, tornam-se cada vez mais incômodas, de simples palpitações, e às vezes uma leve falta de ar, começam a afetar sua vida, até então normal. Nesse período esse homem, já que a esta altura já não era mais um garoto, começa a sentir-se progressivamente incomodado com as dores no seu órgão vital e tenta, em vão, amenizar essas dores com tratamentos paliativos desenvolvidos por ele mesmo, dos quais incluía desde doses, mal dosadas, de Filosofia e Poesia pós-moderna mal interpretada, até a defesa de posições políticas que depois se tornaram frustrantes diante do fracasso de determinadas ideologias, no entanto, mesmo diante do sofrimento causado pelas dores, que se tornaram cada vez mais forte, nunca apelou para medidas desesperadas como a autoajuda e a metafísica religiosa, o que provavelmente o teria levado a um estado vegetativo.
Com o passar dos anos e sem contar com o apoio de nenhum especialista, somente com raras dicas de “não-especialistas” bem intencionados e de ilustres defuntos que repousavam em sua estante, começou uma autoanálise na tentativa de descobrir, ele mesmo, as causas de seu problema. E aconteceu que um belo dia (se me permitem usar essa expressão tão ultrapassada e sem sentido) ele chegou à conclusão de que suas dores tornaram-se mais intensas e incomodas a partir de um determinado momento em que começou a ingerir de forma gradativa e despercebida doses de sonhos e desejos que, a princípio, lhe pareciam não só inofensivas como benéficas, já que a maioria das pessoas “bem intencionadas” vivia a indicá-las a os demais como sendo algo saudável e recomendado para o bom viver.


Foi então que depois dessa fantástica descoberta percebeu que aquele seu órgão, tão vital à manutenção dos demais, estava na verdade contaminado por uma substância que era produzida em outro órgão e que, como soube depois, às vezes se desloca de seu local de origem provocando a infecção de outros órgãos, principalmente o coração, e, nesse caso, por ser ele o responsável pela circulação sanguínea, todo o organismo é contaminado, impossibilitando assim qualquer tratamento que propiciasse uma cura definitiva, o que só era possível com uma cirurgia através da qual seria substituído o órgão infectado por outro que, além de são, deveria ser feito de uma matéria que fosse imune a um possível contágio, dessa forma a substância nociva produzida pelo outro órgão continuaria na corrente sanguínea, porém sem contaminar o novo coração, e após um determinado período esta substância deixaria de ser produzida pelo organismo.
E foi assim que esse homem, hoje já de meia idade, passou a viver com um coração feito de uma matéria imune a qualquer contágio, já que por ser construído de fibras de papel e plástico extremamente flexível, não só pode ter qualquer mancha ou nódoa apagada com uma simples borracha, desenvolvida especialmente para esse fim, como possui uma flexibilidade para suportar impactos que o coração natural não poderia suportar, haja vista os frágeis músculos que o compõem.
Atualmente esse homem vive parcialmente tranquilo, após anos de sofrimento e angústia. Como essa cirurgia é condenada pela Organização Mundial de Saúde, já que a sua legalização prejudicaria de forma drástica o mercado farmacêutico, principalmente o de calmantes e antidepressivos, além de outros setores que lucram com a dor ou tem nela a manutenção de suas divisas, ele prefere não revelar onde e com quem fez a cirurgia, mas garante que os resultados são extremamente positivos, embora admita que o período de adaptação ao novo órgão seja extremamente doloroso, já que o corpo está acostumado às substâncias produzidas pelo antigo, mas que, segundo ele, com o passar do tempo, vão gradativamente desaparecendo juntamente com os incômodos iniciais.
Sei que pelo desconhecimento da maioria em relação a tais procedimentos cirúrgicos, e por não revelar nomes, em virtude da preservação moral e legal das fontes, muitos não darão crédito a esta história, a o que sou completamente indiferente. Porém somente reproduzo o que me foi revelado e por isso sou capaz de jurar, pela virgindade de Alice, que em nenhum momento alterei fatos ou informações recebidas diretamente dos envolvidos no caso.
 Texto escrito por José Nilton.  

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Dividindo-se

Trancou-se no banheiro e deixou jorrar o pranto. As paredes, suas únicas testemunhas, refletiam o som abafado de seu gemido. Ele tentava se recompor, mas não havia jeito de controlar toda aquela emoção. Do nada, esmurrou a parede com força sem se quer sentir dor. O ódio lhe roía as entranhas e por pouco não foi ao encontro de seu algoz. Passado alguns instantes, sentado com a cabeça entre as pernas, sentiu-se mais sereno. Respirou profundamente e aos poucos foi recuperando o equilíbrio. Enxugou as lágrimas, lavou o rosto e ficou ali em frente ao espelho. Repentinamente lhe veio uma vontade estranha de conversar com seu reflexo.

- É meu caro, você está chegando ao fim da linha. Não tem mais para onde correr. É preciso tomar uma atitude e mudar tudo a sua volta.

E após um longo “diálogo”, teve a sensação de sentir-se dividido em dois. Era como se fossem dois Cristianos. Por fim chegou à conclusão que um deles precisava descansar e sair de cena, o outro, cheio de energia, sem passado algum e sem perspectiva alguma assumiria o posto.

E a partir daquele momento, quaisquer críticas, desaforos e agressões sofridas, eram sumariamente destinados ao Cristiano um. Ele, o dois, não tinha absolutamente nada com aquilo e como estava apenas de passagem, estava adorando toda aquela novidade. Como não havia um passado, o Cristiano dois era mais leve, enxergava tudo colorido, era tudo tão novo, tão surpreendente que ele não entendia como o Cristiano um encontrava tantas dificuldades em viver bem.

Mas a melhor parte era ver o Sr. Mário, seu algoz, que tinha como prazer humilhá-lo preferencialmente em público, ficar com aquela cara de interrogação ao ver que sua vítima não o levava mais a sério. O Cristiano dois até se divertia com tudo aquilo.

Mas um certo dia, o Sr. Mário conseguiu se superar e eis que adentra abruptamente no banheiro o Cristiano dois e em frente ao espelho e clama desesperadamente pelo três.


sábado, 7 de abril de 2012

A esperança é a última que morre.


Olhou-se no espelho do banheiro e percebeu um vinco em sua testa. As olheiras estavam bem destacadas e suas pupilas baixas davam à sua face um ar de alguém que desistira de viver. Pensou em voltar para a cama, mas logo mudou da ideia. Resignadamente abriu o guarda roupas e começou a se vestir. Dirigiu-se até a cozinha e serviu-se do café frio do dia anterior enquanto observava pacificamente seu fogão coberto por uma mistura de óleo com farinha de trigo. Por optar em usar pratos e talheres descartáveis, não havia louças sujas. Quando abriu a porta que dava para o quintal, surpreendeu-se com que viu. Suas plantas estavam secas e haviam muitas folhas caídas pelo chão. Mas o que o chocou, foi ver seu cachorro que estava totalmente esquelético e que de tão fraco nem se quer foi capaz de levantar-se para dar seus típicos pulinhos de alegria. Além disso, seu quintal estava repleto de fezes do seu cão e o odor delas provocava tamanha ânsia, que ele conseguiu vomitar apenas a bile, graças a seu estômago vazio.  Sentiu-se tomado por um enorme desgosto, mas ao mesmo tempo, percebeu que ele não era assim tão inútil como muitos diziam. Suas plantas e seu cão dependiam dele para viver. Pensando assim, saiu pelas ruas pisando firme e cheio de dignidade, em busca de uma boa ração para seu cão.
 No caminho, não pode deixar de notar a surpresa estampada no rosto dos vizinhos, que receosos o cumprimentava friamente. Continuou seu trajeto e já chegando próximo à casa de ração, cruzou com uma senhora que segurava pela mão uma menina que devia ter uns sete anos. Essa menina o encarou com um profundo olhar. Ele até se sentiu invadido, pois ela parecia que enxergava todo o seu vazio interior. De repente ela abriu um lindo sorriso e ele não teve como não a comparar com um anjo. Repentinamente sentiu-se invadido por uma alegria tão grande que lhe deu uma estranha vontade de pular. A esperança havia lhe atingido em cheio. E assim saltou lembrando até uma bailarina. Saltou uma, duas e na terceira vez, seu pé torceu violentamente e ele desiquilibrado caiu chocando estupidamente sua cabeça contra o meio fio. O sangue que escorria tinha um vermelho vivo que contrastava com aquela face já pálida. E o espasmo acabou por deixa-lo com um sorriso que lembrava o daquela menina.  


  

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Tiro e Queda

— Desculpe pelo desabafo Clemente. É que a vida é tão difícil pra mim, já tentei de tudo e nada dá jeito nessa agonia.
Clemente por sua vez, só ouvia aquela lamúria que já se estendia por semanas.
—Você também não me ajuda em nada, só fica aí com essa cara de bunda. Fale alguma coisa homem!
Clemente olhou no fundo dos olhos daquela mulher amargurada, esticou o braço até a gaveta da escrivaninha a abriu bruscamente tirando de lá um revólver calibre 38.
—Pegue. Isso aqui é tiro e queda.

Apartamento Macabro

Jaime deu check in num hotel no centro de São Paulo, próximo ao hospital onde ele travaria a batalha contra o câncer que estava a lhe roer por dentro. De forma grosseira, pegou a chave da mão da recepcionista e se dirigiu ao elevador. Ao chegar no 15º andar, caminhou até seu quarto e se jogou na cama, totalmente desolado.
Levantou-se subitamente e aproximou-se do parapeito da janela. Ficou alguns instantes observando a vista de São Paulo enquanto tragava o cigarro que fazia parte de uma das restrições de seu médico. Foi até o bar do apartamento e se serviu de uma dose generosa de uísque. De volta ao parapeito, tragou com toda sua força o cigarro, bebeu de uma só vez o uísque e se lançou através da janela.
O misterioso hospede suicida foi encontrado em minutos por um faxineiro que estava varrendo o jardim. O estado do corpo lembrava um patê com osso. Imediatamente, o faxineiro comunicou o ocorrido ao gerente do hotel e esse sabiamente intermediou a remoção do corpo com absoluto sigilo para não marcar negativamente seu hotel e também para atender ao pedido da família.  
Jaime era um influente político do estado de Goiás e sua família era bem abastada. Eles não sabiam o motivo pelo qual Jaime tinha vindo a São Paulo. Mas ao consultar sua agenda, logo ficaram estarrecidos ao saberem que ele estava doente e em fase terminal.
O apartamento ficou interditado para perícia por uma semana e logo que foi reaberto um hospede escorregou na banheira e fraturou a bacia. O seguinte, quase foi atingido por uma bala perdida, fruto de uma briga de casal do prédio vizinho. O terceiro teve uma overdose fulminante.
O gerente que era uma pessoa espiritualista desconfiou das coincidências e subiu até o apartamento. Ao adentrá-lo, teve um mal súbito que lhe arrepiou da cabeça aos pés, lembrando um gato acuado por um cão. Desceu rapidamente e ligou para seu benzedor.
Duas horas depois, o benzedor e o gerente do hotel dirigiram-se ao apartamento. Mas o gerente evitando passar mal, optou por esperar do lado de fora. Após vinte minutos de absoluto silêncio, começou a achar estranho. Criou coragem e entrou. De cara, avistou a janela aberta e as cortinas agitando-se violentamente devido ao vento. Respirou fundo e foi até o parapeito. De lá, viu seu benzedor esparramado pelo chão.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

CORAÇÃO E MENTE

Meu coração é tão puro.
É presa fácil da mente.
Que o submete em apuro.
Deixando ele descrente.


Mas eu também não sou santo.
Exterminei as projeções.
Para Findar o meu pranto.
E encerrar as ilusões.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Óptica

Focado no que eu chamava vida.
Sem tempo para contemplação.
Rodeado de sombras e carente de cores.
Eu andava assim, como um cego aterrorizado.
Até que um dia, cansei-me e enfim troquei as lentes.

Quietude

Silêncio confortante.
Ruídos são externos.
A paz sempre constante.
Segundos são eternos.

O tempo não importa.
Não há agitação.
A vida em si transporta
Findando a hesitação.

MEDITAÇÃO

Com os ombros tão tencionados quanto cordas de violino, a respiração ofegante e o coração trepidando, resolvo então dar início a técnica que me tirará dessa angústia. Posiciono-me confortavelmente em minha cadeira e respiro de forma lenta e profunda. Sinto um ar quente adentar pelas narinas. Minha musculatura começa a relaxar. A turbulência de pensamentos vai se esvairindo cedendo espaço a um doce vazio. E sinto meu coração enfim repousar suavemente nos braços da paz.