sábado, 31 de outubro de 2020

O que vier

 


Juntos para sempre

 


Mas que lugar esse que você me trouxe? - perguntou Isabela demonstrando preocupação.

- Eu te avisei que o lugar era meio estranho, lembra? – respondeu Henrique num tom sério.

De mãos dadas continuaram sua peregrinação por aquela estrada de chão batido que era cerrada pelas copas das árvores. Fazia pouco tempo que o sol tinha se posto, a temperatura havia caído repentinamente e ambos estavam desprevenidos sem agasalhos. Além disso, a visibilidade estava prejudicada em razão da neblina que caia insistentemente e dava àquele trajeto um aspecto tenebroso.

Após terem caminhado por meia hora, Henrique avistou a modesta casa que procuravam. Ele esteve lá há dois anos, mas não se lembrava direito do caminho. Na ocasião, estava na companhia de um amigo e ainda por cima estava completamente embriagado. Abriu um leve sorriso de satisfação. Satisfação essa não compartilhada por Isabela que tinha na expressão o medo de um animal acuado.  

- Pronto, pode relaxar, já chegamos – disse Henrique

- Vamos voltar, vai , estou muito apreensiva, fazia muito tempo que não me sentia assim, não estou com bom pressentimento – pediu Isabela

- Mas nem pense nisso, agora é tarde, já estamos aqui e não vou desistir.

Quando se aproximaram, a porta da frente da casa estava entreaberta e em seu interior notava-se apenas a penumbra, que dava um ar sombrio e que deixava Isabela cada vez mais aterrorizada. Henrique tentava a qualquer custo disfarçar seu medo, mas já se via a ponto de sucumbir se caso Isabela tornasse a convidá-lo a se retirar daquele ambiente claustrofóbico.

Henrique tomou a frente e gritou – Seu Dantas!

O silêncio permaneceu por alguns instantes e em seguida foi quebrado por uma voz grave e poderosa, que demonstrava contrariedade.

- Aguardem um momento!

Prontamente os dois obedeceram à solicitação permanecendo estáticos em frente da casa. Em seguida, apareceu um homem com uma expressão dura no rosto.

- O que querem?

- Eu já estive aqui há um tempo com um amigo e o senhor nos atendeu, não se lembra?

- Meu amigo, eu atendo inúmeros clientes, não acha que me lembraria de você em especial, acha?

- O senhor deve estar ocupado, não foi nossa intenção atrapalhá-lo, podemos voltar outro dia, é só o senhor nos falar a data – disse Isabela.

Dantas deu um suspiro longo e em seguida os convidou a entrar em sua casa.

- Sentem-se e fique a vontade, vou terminar de atender um cliente e já os atendo.

Dez minutos depois, saiu de um dos cômodos, um rapaz magro, que tinha em seus olhos o brilho da esperança. Era o último cliente daquele dia. Henrique conteve seu ímpeto em pedir para que aquele rapaz os aguardasse e os fizesse companhia na volta para casa, pois o regresso também já o preocupava. O rapaz apenas acenou com a cabeça e saiu a passos largos.

Passado alguns minutos, ambos tornaram a ouvir aquela voz que agora vinha do interior do cômodo que eu rapaz havia saído.

- Entrem! – Ordenou Dantas.

 - Vai dar tudo certo! – disse Henrique à Isabela, tentando ele mesmo se convencer de suas palavras.

Já no interior da sala, Henrique explicou à Dantas, o motivo pelo qual foram ao seu encontro. Disse que já sabia a algum tempo da sua fama pela região e que quando o procurou há dois anos, foi para acompanhar um amigo que estava com o coração partido e que através dos resultados obtidos pelo amigo, ficou motivado a procurá-lo.

- Modéstia a parte, meu trabalho é bem reconhecido por essas bandas, eu sei bem disso.

A partir dali, através dos elogios tecidos por Henrique, Dantas começou a tratá-los com menos rispidez.

 Henrique por fim, pediu para que Dantas materializasse o pacto que ele havia feito com Isabela, pois acreditava piamente em seu poder.

Isabela e Henrique tinham inimigos em comum e eles em várias ocasiões tentaram separar o casal usando de todos os artifícios, obtendo um sucesso momentâneo em uma delas. Mas durante a separação, Isabela procurou uma cartomante que a alertou de todos os pormenores. Eles temiam passar por isso novamente e resolveram optar pelo pacto.

- Pode ficar despreocupados, o que eu uno nunca se separa. Mas isso vai custar dinheiro, vocês sabem? – disse Dantas

- Dê seu preço, dinheiro não é problema para nós – disse Henrique

- Por vocês não terem agendado, vou ter que cobrar um valor adicional, tudo custará R$ 2.000,00 ok?.

Henrique tirou do seu bolso um bolo de dinheiro e em seguida completou com o que havia em sua carteira e entregou a Dantas

- Pronto, pode dar início – ordenou Henrique

Dantas foi até o armário, pegou um estojo grande e tirou do seu interior algumas tintas, seringas, agulhas e uma máquina de tatuar e as distribuiu cuidadosamente na mesa. Em seguida pediu para Isabela e Henrique esticarem seus braços sobre a mesa, para ele tirar um pouco de sangue e misturar com a tinta que ele iria utilizar ao tatuar seus respectivos nomes nos braços.

Isabela estava perplexa, não imaginava que iria tão longe naquela loucura, mas resolveu acreditar assim mesmo.

Dantas quando jovem atuou um bom tempo como tatuador quando morava na cidade, mas resolveu abandonar o ofício em prol do misticismo.

Duas horas depois, estava Isabela com o nome de Henrique em seu antebraço e Henrique com o nome dela no seu. Ambas eram bem pequenas e o desenho das letras agradou Isabela.

Dantas reforçou a garantia de seu serviço e os acompanhou até a saída.

 

II

 

Passados três anos Felipe surge em frente à casa de Dantas gritando seu nome.

 Dantas o atendeu com seu mau humor habitual e logo soube que Felipe era amigo de Henrique e que era ele que havia estado com Henrique na primeira vez que o visitaram. Dantas se lembrou com facilidade, pois não era todo cliente que pagava uma quantia tão generosa quanto aquela que Henrique havia desembolsado.

Quando Dantas começou a se vangloriar devido ao seu serviço prestado ao casal, Felipe o interrompeu bruscamente.

- Senhor Dantas, eu já sei de toda a história e é justamente por isso que estou aqui. Quero que o senhor desfaça o que fez e lhe explico o porquê – disse Felipe.

Dantas arregalou os olhos e ouviu atentamente o que Felipe começou a dizer.

- Uma semana após Henrique e Isabela terem o procurado, ambos sofreram um acidente violentíssimo de automóvel. Isabela teve sua cabeça decepada e Henrique sobreviveu, mas praticamente vegeta, pois perdeu as duas pernas e um braço, por coincidência, o braço que lhe restou é o tatuado.

Além disso, Henrique tentou suicidar-se inúmeras vezes e seu quadro vem se agravando seriamente. Ele alega que através dos sonhos, Isabela está o aguardando para não romperem o pacto. – concluiu Felipe.

Dantas ao ouvir  aquelas novidades, olhou para baixo e em voz baixa disse:

- Lamento, não posso fazer nada. Eu os avisei que quando uno os casais, não consigo mais desfazer o pacto, portanto, essa situação há perdurar.

Felipe ainda tentou convencê-lo, mas não obteve sucesso, Dantas estava irredutível.

 

III

 

Passados seis meses, Henrique sofre um derrame que o deixa em estado vegetativo. Para desespero de Isabela a família dele resiste a proceder com a eutanásia.

 

IV

 

É chegado o dia da exumação de Isabela. Para espanto dos presentes, restava além dos ossos, seu braço intacto com nome de Henrique tatuado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Eutanásia

 


O pai adentra o quarto do filho. Em uma mão, o boleto da escola, na outra, o sangrento boletim.

- Ah, desligou o computador!

- Responda agora: sete vezes seis?

O filho surpreende-se

- Soletre a palavra exceção.

- Já vou te explicar o porquê disso. A propósito, o porquê se escreve junto ou separado? Possui acento ou não?

O filho se aproxima do computador, mas logo é impedido pelo pai.

- Você não vive sem ele? Se vira meu filho, vai!

 O filho balbucia algo incompreensível. Uma babinha escorre pelo canto da boca. O pai contrariado liga o computador e se retira dizendo baixinho.

- Sou contra a eutanásia.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Anjo da morte

 


Olhou-se no espelho do banheiro e percebeu que suas olheiras estavam bem destacadas. Suas pupilas baixas davam à sua face um ar de alguém que desistira de viver. Pensou em voltar para a cama, mas logo mudou da ideia. Resignadamente abriu o guarda roupas e começou a se vestir. Dirigiu-se até a cozinha e serviu-se do café frio do dia anterior enquanto observava a imundice que estava seu fogão. Por optar em usar pratos e talheres descartáveis, não havia louças sujas. Quando abriu a porta que dava para o quintal, surpreendeu-se com que viu: Suas plantas estavam secas e havia muitas folhas caídas pelo chão. Seu cachorro estava esquelético e de tão debilitado, não foi capaz de saltar de alegria ao rever seu dono.  Além disso, seu quintal estava repleto de fezes e seu odor provocou tamanha ânsia, que ele  vomitou apenas a bile, devido a seu estômago vazio.  Sentiu-se tomado por um enorme desgosto, mas ao mesmo tempo, percebeu que ele não era assim tão inútil como muitos diziam. Suas plantas e seu cão dependiam dele para viver. Pensando assim, saiu pelas ruas pisando firme, com dignidade, em busca de uma boa ração para o cão.

 No caminho, não pode deixar de notar a surpresa estampada no rosto dos vizinhos, que receosos o cumprimentava friamente. Continuou seu trajeto e próximo à casa de ração, cruzou com uma senhora que segurava pela mão uma menina que devia ter uns sete anos. Essa menina o encarou com um profundo olhar. Ele sentiu-se invadido, pois parecia que ela enxergava todo o seu vazio interior. Ela abriu um lindo sorriso e ele não teve como não compará-la a um anjo. Repentinamente sentiu-se invadido por uma enorme alegria. Ao distanciar-se da menina, sentiu vontade de pular pela rua e assim o fez. Saltou uma, duas e na terceira vez, torceu seu pé violentamente.   Desequilibrado caiu chocando estupidamente sua cabeça contra o meio fio.

O sangue que escorria tinha um vermelho vivo que contrastava com aquela face já pálida. E o espasmo acabou por deixá-lo com um sorriso que lembrava o daquela menina.  


O felizardo infeliz.

 


Para Raimundo havia restado apenas duas coisas: a bola nove e o jogo da mega sena que ele imerso em desespero acabava de apostar. Era a vez de Dirceu, seu oponente, a dar a tacada que acabaria de vez com toda a sua dignidade.

Nesse momento, Raimundo sentiu-se aflito ao lembrar que teria de dar satisfações à sua esposa. Ela aguardava ansiosamente pelo salário que ele havia recebido naquele  dia para poder pagar o aluguel atrasado do único cômodo que moravam. Sua aflição aumentou quando pensou na hipótese das dezenas do seu jogo serem sorteadas naquela noite e o volante não estar mais em seu poder

Dirceu, de forma fria e implacável pôs fim àquele tormento. Com uma jogada magistral, fez com que aquela bola que representava toda a angústia de Raimundo, fosse enfim parar dentro da gaveta. Restou a Raimundo, o suspiro dos derrotados. Atordoado, cumprimentou seu algoz e saiu com o dobro de seu peso. Começava ali sua paranóia. Não importava a chateação da mulher, o aluguel atrasado e a humilhação de ter perdido tudo. O que importava era o sorteio da mega sena que estava prestes a acontecer.

Ao chegar em casa, colocou a  mulher a par do acontecido. Ela, após ouvir o triste relato, trancou-se no banheiro e passou a noite por lá.

 No dia seguinte logo no primeiro horário, estava Raimundo em frente à casa lotérica aguardando sua abertura. Por se julgar perseguido pela falta de sorte, tinha absoluta certeza de que as dezenas jogadas por ele eram as mesmas sorteadas. Raimundo nem esperou a abertura total das portas e entrou agachado, procurando desesperadamente o cartaz onde estava o resultado. Para surpresa das atendentes, começou a pular e a gritar levando-as a supor que ele havia ganhado o prêmio de nove, sim, nove milhões de reais. Uma delas criou coragem de se aproximar e perguntou se era ele o sortudo. Para espanto dos presentes, Raimundo soltou em plenos pulmões.

— Não, não fui eu quem ganhou, mas sou...

Raimundo foi diminuindo o tom de voz e soltou quase sussurrando.

—Sou um felizardo infeliz.

E toda aquela cena por ele protagonizada, converteu-se em um choro copioso