terça-feira, 10 de novembro de 2020

Pedinte

 


Dirigiu-se à feira na esperança da caridade alheia. Aproximou-se discretamente de uma barraca e deslumbrou-se com a cor viva do mamão formosa. Mais adiante, na mesma barraca, havia várias bacias repletas de kiwi. Fruta que ele experimentara na semana anterior.  A boca foi se enchendo de água, quando emergiu bruscamente o funcionário o expulsando aos berros. Cabisbaixo seguiu adiante, quando presenciou duas cédulas de dez reais caindo do bolso de trás de um cliente. Rapidamente apanhou as notas do chão e quando foi guardá-las, lembrou-se dos conselhos de sua avó. Correu de encontro ao homem e devolveu o dinheiro. Hesitou em pedir uma moeda, mas o ingrato virara as costas sem ao menos lhe agradecer.

Pensou na avó com tanto ódio!

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Possante

 


Deu a partida. O motor rateou. Seu coração ameaçou parar, mas o carro funcionou. Pisou com vontade no acelerador e a fumaça preta tomou conta da rua. Sério, encarou o vendedor por alguns segundos, mas logo abriu um sorriso. De dentro do Chevette 1977 entregou para o homem o dinheiro embrulhado em um jornal e saiu devagar com o carro. Ao passar em uma lombada teve a impressão de o pára-choque ter caído. Seguiu em frente e constatou pelo retrovisor que nada havia ficado para trás. A cem metros do semáforo pisou no freio e percebeu que se não quisesse passar medo deveria frear com mais antecedência. No aclive, o carro quase cedeu, mas conseguiu subir em primeira marcha com a rotação alta, quase a explodir o motor.

Ao chegar em casa, a esposa estava à espera. Ele saiu orgulhoso do Chevette e entrou na casa.  Ela, apenas balançou a cabeça negativamente e voltou a varrer a calçada. Quando ele voltou, estava munido do velho equipamento de pesca.

- Vou passar na casa do Zé, do João e do Paulo. Não tenho hora pra voltar – disse ele.

- A mulher já conformada perguntou:

- Esse carro aguenta tanta gente?

E a imagem do aclive veio imediatamente a sua cabeça.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Precisa-se

 


Sentindo a quentura do chão através dos furos em ambos os sapatos, não se deteve e prosseguiu. Já se passava de uma da tarde e seu estômago, comprimido desde cedo, rugia feroz. Avistou ao longe, a fábrica que o guiava pela fumaça da chaminé. Sentiu o coração descompassar. O corpo exausto cambalear. A custo prosseguiu.

Aproximou-se discretamente da guarita ao mesmo tempo em que tirava a carteira de trabalho do bolso traseiro. Lá dentro, o novato segurança assustou-se com o gesto. Precipitado, alvejou o rapaz. Futuro candidato à vaga da limpeza.     

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Muita calma nessa hora


Com mãos trêmulas, tentou colocar o disco na velha vitrola. Tentou inúmeras vezes, mas o vinil não encaixava. Pensou em arremessá-lo longe, porém a vontade de ouvir aquela canção falou mais alto. Controlou-se e tentou mais uma vez, obtendo êxito. Passou para a fase seguinte: posicionar a agulha na faixa desejada. Não tinha a precisão e a delicadeza para controlar o braço da vitrola. Dessa vez era a vitrola que quase foi de encontro ao chão. Contrariado, pegou a garrafa de vinho que estava à espera e tentou abri-la. Para seu desespero, o saca-rolha se quer penetrou na rolha. Possesso, depositou a garrafa sobre a mesa, pegou sua bengala e quando se encaminhava para ir dormir, ouviu a campainha. Resmungando atendeu a porta. Era a nova vizinha, senhora distinta, que se mudara naquele dia. Queria emprestado um saca-rolha.


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Jaz a esperança

 


- Saí daí, moleque! Quer morrer? – Grita o traficante enquanto dispara o fuzil contra o helicóptero.

O menino, confuso, permanece estático segurando firme o embrulho.

Um som seco ecoa do alto.

Rolam escadaria abaixo: o menino, Proust, Kafka e Joyce.